06 março 2013

A verdade sobre todas as coisas - 8º: não levantar falso testemunho



                                                                      I
A cidade corre como seu todos os dias, numa naturalidade que amedrontaria um tanto aos olhares mais atentos. Como num balé, multidões inidentificáveis e eternamente condenadas ao atraso, passeiam em suas sincronias às pressas, seus engarrafamentos, afogamentos de superlotação no transporte público. Nos estabelecimentos, onde a circulação intensa cede espaço ao salgado engordurado e café, ou cerveja, ou pinga, ou refrigerante dietético, ou ainda nas residências cansadas do longo dia, ou nos caminhos lotados dessas residências, ou pelos bolsos em seus aparelhos digitais, chegam por telas eternamente acesas as atualizações da beleza na cidade, as vidas das pessoas famosas da cidade, as notícias da violência da própria cidade; em toda a cidade, chegam notícias da cidade; aos belos e grandiosos, aos violentos e aos violentados, chegam notícias dos famosos, da beleza e da violência na cidade. E a essas notícias, o pânico. O pânico de frequentar a rua, fora da pressa sufocada das horas comercias (há uma bolsa de investimento e especulação das horas mais lucrativas dos dias); o pânico de desesperadamente encontrar uma semelhança entre si e a beleza; o pânico de alguma forma fazer parte de sua grandiosidade. E a essas notícias belas, grandiosas, famosas e violentas, e ao pânico, a boa justificativa para mais violência, sobretudo essas notícias violentas, que emprestam à violência os status de bela, famosa e grandiosa, e porque tudo que chega das telas, se chega pelas telas, só pode ser uma versão purificada da verdade. E às telas, tudo se refere, não só porque seja onipresente, mas principalmente, por sua onisciência. Há câmeras por toda parte, seja na missão de flagrar e deflagrar a violência, seja na missão de divulgar belezas, famas e grandiosos costumes; todos estão sujeitos não só a receber as notícias da cidade, mas principalmente a voluntariosamente, ceder novas notícias a seu panteão vertiginoso e efêmero. A cidade soa assim plena em sua normalidade, onde cada qual desfila seu cotidiano rotineiro, a certeza das câmeras para flagrar seus momentos e das telas para divulga-los, com a aparência convertida em gesto, e comprovando em seus gestos gravados, as verdades que gostaria de mostrar ao mundo: pelas telas, a vida na cidade afirma sua verdade.
                                                                    
                                                                     II
O homem negro de terno entra sisudo no vagão; procura um assento e, olhando em volta, se depara com um grupo das garotas em roupas mínimas, cabelos alisados e gestos bastante expansivos. Ele que carrega um livro de capa de couro preta embaixo dos braços, ao se deparar com as garotas, que o olham com certo despeito, segura mais forte o livro e desloca seu olhar, atravessa as telas, procurando assento do outro lado do vagão. Ao sentar percebe estar perto de um casal homossexual; as telas captam o momento em que olha para as mãos dadas dos dois homens e se surpreende. Já era tarde: não poderia voltar a se levantar, sem levantar as suspeitas de quais eram suas razões; teria de lidar com a presença imoral e a conduta antinatural daqueles sujeitos, e que diabos dos infernos que esse mundo está perdido mesmo, se vê por esse vagão, que não tem um canto sem sordidez. Da mesma forma, o casal homossexual percebe a presença daquele homem negro de terno, logo a seu lado. Supõe: um preto de terno ou é segurança ou é crente; mais uma vez as telas capturam a expressão de curiosidade e desdém de seus rostos no momento exato em que ambos analisam o homem de cima abaixo. Ao perceberem a convicção com que o homem negro de terno se agarra ao seu livro de capa de couro preta, percebem de imediato: trata-se se um fanático religioso ignorante e homofóbico, isso se não for um pastor ladrão. As telas, então, formam um quadro de desconforto mútuo no primeiro momento de viagem, que se desfaz numa cortina entre a cordialidade e a presença tolerada.   
No entanto havia ainda outro empecilho de urbanidade a se levar em conta. Sabiam da presença das câmeras. Não que houvesse alguma polícia ou coisa que o valha para que lhes ordenar como deveriam agir. Aquele homem negro de terno agarrado com afinco a seu livro de capa de couro preto era livre para agir segundo sua própria disposição; no entanto, sabia, como todos os demais, que sua atitude era acompanhada pelo olhar mecânico das câmeras e tida como exemplo diante das telas; trata-se de afirmar para os seus, que fique claro, segundo sua atitude, a coerência de sua fé: seu desafio era reprova-los, em seus gestos, com uma sutileza que evitasse que essa reprovação pudesse servir de justificativa para uma resposta por parte do casal homossexual. Da parte do casal homossexual ocorria algo muito parecido: toda a indignação de uma comunidade deliberadamente atacada de maneira atroz pelas as ultimas declarações de religiosos obscurantistas, poderia estar acompanhando a situação, afinal era evidente que aquele homem os mirava com todo o preconceito. Da mesma forma, não queriam se rebaixar ao nível desses sujeitos ignorantes, bárbaros ofensivos contra os direitos e a liberdade individual.
As telas mostram o casal homossexual, de maneira altiva, trocando carícias leves. Aquelas carícias tinham a representatividade de uma bandeira multicolorida, e era esse o espírito de sua atitude: carregavam com carinhos, ora bolas, mesmo que mais por raiva que por afeto, o orgulho de sua luta, numa batalha silenciosa e ostensiva, num gesto que imaginava ter de um lado a sua comunidade ofendida como plateia, e de outro, o escárnio descarado sobre o preconceito. As telas mostram que a troca de carícias do casal homossexual gerava no homem negro de terno um desconforto enorme: a cabeça fazia suaves gestos de negativa, enquanto sua testa aos poucos ia minando suor, as mãos agarraram-se à ao livro de capa de couro preto e sua respiração ofegante, ficava cada vez forte. É que o homem internamente, ainda apenas diante si e de seu Deus, orava; orava rogando ao espírito santo que livre aqueles dois homens do fogo do inferno pela prática da sodomia, que os cure dessa prática doentia, e principalmente, que livre a ele e aos seus daquele espetáculo pecaminoso que se apresentava em pleno vagão e se difundia sabe Deus para onde e para as vistas de que crianças inocentes por meio dessas telas.
A respiração ofegante do homem negro de terno soava para o casal homossexual como uma provocação, a declaração de seu incômodo diante de sua simples presença. As telas mostram o casal homossexual entre carícias leves, observando o homem negro de terno com suas negativas suaves com a cabeça, e os olhos fechados enquanto ora. Então, um dos dois homens apoia-se sobre o colo do outro, ostentando mais claramente nas telas sua posição de casal. O suor do homem negro de terno aumenta drasticamente, tomando não só a sua testa em largas gotas, como empapando sua camisa na região do peito; não era apenas o constrangimento que lhe causara o suadouro, como pelo próprio clima quente, em vapores que emanavam do vagão. Tanto era assim que mesmo o casal homossexual, ao se manterem um no colo do outro começavam também a suar de maneira bastante incômoda; no entanto, não se levantariam: sua posição tinha algo além do simples conforto momentâneo; havia ali uma proposição política. E é bem verdade também que não apenas o calor fazia com que o casal suasse, mas também o nervosismo gerado pela expectativa da situação. Afinal, iria o homem negro de terno, seu oponente ocasional, levar às últimas consequências a peleja? O homem negro de terno ao perceber que o casal homossexual parecia muito mais à vontade, inspirados pelo demônio, de certo, abriu seu livro de capa de couro preto e começo também a orar de maneira ostensiva, repetindo as palavras do livro como quem resmunga algo, em dizeres um tanto confusos, mas deixando claro que estavam sendo ditos: um espetáculo de fé, e que fosse fonte de inspiração para a moral de toda a cristandade que o acompanhava pelas telas, aquele homem, que como um profeta, enfrentava com dizeres santos a provocação diabólica.
Estava agora declarada guerra. Por um lado, um casal de homens um no colo do outro, e por outro, um homem negro de terno lendo em voz alta e imperiosa e eis que hoje eu ponho diante de vós a bênção e a maldição, ainda que de maneira confusa, seu livro sagrado de capa de couro preto. O clima tenso estava declarado, e se notava espalhado mesmo para o resto do vagão; eles se encaram os três, suando em bicas, e as telas fixavam a imagem de um homem negro de terno pregando com mais eloquência que fé, para um casal homossexual que, assistia ao discurso com um sobre o outro numa certa ternura forçada.           
À medida que a tensão se torna evidente, o homem negro de terno aumenta seu tom de voz em gestos cada vez maiores. Não só pelas telas se vê o embate de convicções e modos de vida, como pelo resto do vagão, a situação ganha todo foco; dada sua circunstância espetacular, nenhum dos lados abriria mão da peleja. E quando o homem negro de terno já se encontra à beira dos berros, se não cumprires o mandamento do vosso senhor, o casal homossexual dá um beijo enorme, quente, úmido, cheio de línguas e suspiros.
Nesse momento, o trem para na estação; dois meninos maltrapilhos, com umas camisetas de candidato político, chinelos de dedo entre dedos pretos de sujeira, algumas cicatrizes, e um acordeom que um deles carrega nos braços. Enquanto um começa a tocar, o outro pede licença aos passageiros, que nós não queremos incomodar os senhores, só mostrar um pouco do nosso trabalho e pedir sua ajuda que Deus os abençoe. Todos se calam diante de sua singeleza; o vagão inteiro é tomado, não pela pena desses pobres meninos pobres, precisamos mesmo dar uma colaboração de bom grado, mas a música se alastra por todos os cantos como uma chama de outra natureza; o beijo e a pregação se interrompem contemplativos daquela cena: um toca, o outro canta e passa uma cuia para as moedas. A comoção no vagão era tamanha que quase todos deram a sua contribuição, afinal mesmo que pouco, é de coração e esses meninos bem merecem.  As telas mostram os meninos tocando e arrecadando moedas e sorrisos pelo vagão; mostra o casal homossexual boquiaberto; mostra o homem negro de terno com os olhos marejados: algo naqueles meninos lembrava a ele próprio, em suas meninezas, e esse tipo de calor emocional, câmera nenhuma pode ser capaz de captar.
Então, com os olhos ao ponto do pranto, o homem negro de terno retirou sua carteira simples do bolso, esvazio-a por completo e depositou tudo na cuia dos meninos maltrapilhos. O menino maltrapilho que carregava a cuia, ao ver a quantia que o homem negro de terno depositava ali, agradeceu acaloradamente com um sorriso largo como a plataforma e um abraço forte.  As telas mostram o abraço, mas não teriam condições de expressar o que se presenciava; mostravam o casal homossexual se olhando diante do homem negro de terno.  
Mais uma vez o trem para na estação; e da estação, sobem seguranças da companhia de trens que afinal, viram pelas telas e cena comovente e ilegal. Abruptos, tomam a cuia dos meninos maltrapilhos, tomam seu acordeom e vão retirando do vagão as crianças, que já não choram mais nessas situações. Um dos homens do casal homossexual se levanta: esse é trabalho deles, seu troglodita, fascista! E o segurança: esse é o meu. Trabalho inglório o dele, servicinho de merda; e esse pensamento pairava sobre as cabeças de todos no vagão, com o trem partindo mais uma vez da estação.
Então o silêncio tomou o vagão; ouvia-se apenas o rangido metálico dos trilhos se roçando junto do trem, enquanto todos pensavam naqueles meninos e tomara Deus, não tenha lhes acontecido nada demais, apenas uma bronca e deixem, por favor, eles irem com o dinheiro e o acordeom. O casal homossexual olhava para baixo, ambos pensando nas lágrimas que hesitaram em cair por aquele rosto negro e humilde, que deu sem pestanejar tudo o que tinha, e num gesto tão sincero e espontâneo, tão diferente daquele discurso enfadonho e eloquente, coreografado, que fazia antes a chegada dos meninos maltrapilhos. E o homem negro de terno não voltou a olhar o casal homossexual, porque tinha vergonha de ver não o demônio se levantando na tentativa de proteger as crianças, mas um humano dos mais nobres, enraivecido diante de uma injustiça evidente, dando voz à vontade de todos os presentes. Eles se admiravam; por um momento, quase quiseram trocar sorrisos. Mas se viram nas telas, calados, com os olhares fugitivos uns dos outros, e se lembraram de que eram ali representantes de algo que ia além deles mesmo: o preconceito e a verdade que deveriam sustentar.
Não se olharam, não oraram, não se acariciaram. Passaram o resto da viagem como desconhecidos, os três. Num silêncio que era de uma devoção, de uma quietude toda dedicada a suas presenças; um silêncio de homenagem velada.
Na estação seguinte o casal homossexual desceu, sem olhar para trás. O trem seguiu.      
                                                                                          Jurandir Dente d'ouro.                                                                   
Decálogo.   


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